Curso e Potencial
- Yi Jing Orienta
- Yi Jing: Uma ferramenta para o autoconhecimento
- Fundamentação teórica
- Curso e Potencial
CONTEÚDO DA FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
História do Yi Jing
- China: de tartarugas a bibliotecas
- Escolas tradicionais de interpretação
- Ocidente: da curiosidade ao interesse
Por que funciona o Yi Jing?
- Sobre discursos e palavras
- Natureza: Céu e Terra, 天 tian, 地 di
- Processos interligados: 萬 物 wàn wù, 物 化 wù huá
- Energia: 氣 qì, 陰 yïn, 揚 yáng
- Tudo muda
- Curso e Potencial: 道 dào, 德 de (Tao Te)
- Imagens e sementes: 象 xiang, 精 jïng
- Autêntico e espúrio: 情 qíng, 偽 wèi
- Causalidade ou casualidade?
- O hexagrama, um conceito unificador
- O Yi Jing é um modelo
Curso e Potencial: 道 dào, 德 de (Tao Te)
Pensemos num rio. Ele nasce nas escarpas das montanhas, pula desníveis formando cachoeiras, serpenteia pelas planícies e deságua finalmente no mar. Ele tem um curso que o define, resultado da interação entre seu caudal de água e as características do terreno pelo qual se desloca. Se considerarmos uma folha flutuando nesse rio vemos que seria incorreto que ela pretendesse desatrelar-se do caminho que as águas vão marcando: o natural e correto é que ela siga esse caminho determinado pela harmonia entre a água e o terreno. Esse curso é o que os chineses denominaram o 道 dào próprio desse rio ou dessa folha, ou seja, o conjunto de circunstâncias pelas quais cada processo deve passar e a forma com que ele deve enfrentar essas circunstâncias 1.
Mas (um grande ‘mas’), há rios e rios. Alguns deles são turvos e fluem devagar; outros são intensos e límpidos. Perante uns permanecemos indiferentes; perante outros somos tocados pela sua majestade. Uns nos provocam pavor; outros nos fascinam e inspiram. Uns têm o potencial de abrigar uma termoelétrica e outros não. Cada um deles tem uma energia que o caracteriza e esta energia influi no mundo ao seu redor de uma forma e com uma intensidade que lhe é própria. Essa característica é o que os chineses denominaram 得 dé, a intensidade com que um processo influi naqueles outros com que se relaciona.
Consideremos agora a palavra ‘campo’ que, além de significar “terreno plano”, tem, dentre outras, várias acepções interessantes que podem, por analogia, iluminar o assunto que nos ocupa (Dicionário Houaiss):
CAMPO: “Região que se encontra sob a influência de alguma força ou agente físico como, p.ex., o campo eletromagnético, o campo gravitacional ou o campo de temperaturas; derivação (por sentido figurado): área em que se desenvolve determinada atividade; esfera de ação; domínio, âmbito; espaço, meio para se realizar ou debater algo”.
Podemos relacionar os dois conceitos chineses que estamos analisando fazendo uma analogia com um campo de forças, como, por exemplo, aquele que se manifesta ao redor de uma estrela. Seu campo, neste caso gravitacional (também existem ao redor dela campos magnéticos, elétricos, etc.), é a sua capacidade de influir na posição e no movimento dos planetas que a rodeiam. A ideia de campo de forças, que agora nos parece natural e intuitiva, exigiu um esforço das mentes mais esclarecidas do planeta para ser formulada no século XIX. Até então só se aceitava que um objeto podia afetar outro mediante a aplicação direta de uma força através de um meio que a propagasse; para isso, e dominados pelo conceito de ‘substância’, os físicos postulavam a existência de um éter que permeava o Universo, mas que ninguém conseguia encontrar. Um campo de forças, por outro lado, exerce uma ação indireta que age, inclusive, através do vazio. Que a simples existência da massa da estrela produzisse um efeito à distância foi um osso duro de roer para a comunidade científica daquela época.
Noutras palavras, um campo de forças é o resultado da ação à distância de um corpo; essa ação depende da forma do corpo, e sua intensidade e alcance dependem da grandeza desse corpo. O conceito de campo, porém, não se aplica somente à Física. Karl R. Popper (“O eu e seu cérebro”, pág.52, UNB, 1991) recomenda:
“[...] substituir as ideias clássicas de possibilidade, potencialidade, capacidade ou força, pela sua nova versão – pela probabilidade ou propensão. Como vimos, a primeira emergência de uma novidade tal como a vida pode mudar as probabilidades ou propensões no universo. Poderíamos dizer que as novas entidades emergentes (micro e macro) mudam as propensões (também micro e macro) nas suas adjacências. Elas introduzem novas possibilidades, probabilidades ou propensões nas suas proximidades; criam novos campos de propensões, como uma nova estrela cria um novo campo gravitacional.” 2
O conceito de homem na China é análogo ao de um campo de forças. Cada homem influi nas suas circunstâncias de uma forma particular em função de sua posição na sociedade e da sua experiência, e o faz com uma intensidade proporcional à sua “força moral”. A essa capacidade de influir à distância a partir da sua posição e experiência a chamaram 道 dào, que significa “caminho”, e daí obtemos outras acepções como “curso, percurso, discurso, guiar, propensão com que o homem age no mundo”. À intensidade dessa ação denominaram 德 dé, que significa “força moral; potencial; virtude (no sentido latino de: qualidade própria para que se produzam certos efeitos; característica, propriedade)”.
Resumindo, podemos dizer que dé é a capacidade de influir no entorno e dào a forma de implementar essa influência. O dào é o que se faz e o dé a intensidade com que se faz. Juntos caracterizam o que Ames e Hall (2003, pág.21) chamam de:
“ars contextualis, a arte de contextualizar: uma forma de viver e de se relacionar com o mundo que simplesmente procura obter o máximo possível da diversidade das experiências”.
Assim, para os chineses o homem não era um ‘ser’ limitado pela sua pele e empacotando, de alguma forma, uma alma. Ele se estendia pela sua família, sua cidade, seu país, em função do seu dé. Os maiores exemplos são os imperadores, cuja influência atingia os quatro cantos da China, ou o de Confúcio, cuja força moral, dé, era tão grande que sua influência perdura por séculos após ter morrido.
Mas o dào e o dé não são exclusividades humanas, são propriedades dos 萬 物 wanwu, “os dez mil processos”, ou seja, de todo o manifesto. As pirâmides egípcias têm um dé muito intenso, bem como o David de Michelangelo, o Céu Estrelado de Van Gogh ou a Nona Sinfonia de Beethoven. Todos eles têm um dào, ou seja, exercem uma influência que transcende tempo e distância (o espaço-tempo). Eles, porém, não são isolados, interagem entre si: O que terá pensado o Mozart adolescente quando viu o David? Como o equilíbrio da estátua o afetou e se refletiu na sua música? Os ‘quatro mil anos de História’ aos que o jovem Napoleão se referiu aos pés das pirâmides, quanto terão influído na sua decisão de passar ele mesmo à História? Obras de arte e indivíduos se influem mutuamente formando culturas específicas que, por sua vez, têm seu dào e seu dé. O dào de Roma cresceu na época republicana e nos começos do Império pela força do seu dé. Quando, na época imperial, perdeu seu dé, seu dào, portanto, seu poder e influência encolheu. A Bíblia, o Talmude e o Alcorão são dàos com seus dés, mas são caminhos que se interpenetram e superpõem. Quais são os limites entre nossos parceiros(as) e nós? Quanto de nossos pais existe em nós? Em resumo, é ilusão pensar que somos um ‘Ser’ diferente e separado dos demais ‘seres’.
O capítulo LXVII do Dao De Jing diz sobre o sábio:
Sem sair da sua casa conhece 3 tudo embaixo do céu; sem espreitar pela janela enxerga o curso do céu.
Ou seja, o sábio é capaz de atingir limites longínquos sem que importe o locus onde se encontra, mas sim o focus com que se posiciona com relação a suas circunstâncias.
Por outro lado, o capítulo LI do Dao De Jing começa dizendo, ao falar dos dez mil processos que correspondem a todo o real:
O dào (o campo de ações) os faz nascer, o dé (as intensidades das ações) os alimenta,
os [outros] processos lhes dão forma, as circunstâncias os completam.
Um processo se origina pela interação com todos os outros processos (cada um seguindo seu dào), cresce com a intensidade com que eles se manifestam (cada um com seu dé) e a forma que adquire é resultado dessa complexa interação. Por isso podemos concluir que, primeiro, nada pode ser isolado de suas circunstâncias sem perder parte do que ele é, e segundo, em cada processo podem encontrar-se traços de todos os outros. Tudo é interdependente, o que mais uma vez nos remete ao “eu sou eu e minhas circunstâncias” de Ortega e Gasset ou à imagem budista do universo como um conjunto infinito de diamantes, cada um deles reverberando todos os outros. Então, porque nos surpreender se um livro tem a pretensão de refletir todos os fenômenos existentes?
Considerando a influência que teve na cultura chinesa, podemos dizer que o Yi Jing tem um dé muito forte e sua capacidade de interagir com todos os fenômenos não deve ser menosprezada. Acaso não podemos dizer o mesmo da Bíblia? Existem pessoas que a abrem de forma aleatória e encontram respostas aos seus anseios. Estarão erradas? Que será que encontram nesses textos?
NOTAS
- ↑ Esta analogia entre o dào e um curso de água é utilizada intensivamente no Dao De Jing.
- ↑ Propensão: “Capacidade inata para (algo); inclinação, vocação, pendor; escolha ou decisão prévia; intenção, disposição, tendência”.
- ↑ Lembramos que ‘conhecer’ em chinês significa ‘saber fazer’ (vide Glossário).